De Roswell a Varginha, de Renato A. Azevedo. São Paulo: Tarja Editorial, 2008, 103 páginas. Capa de Fernando R. Fernandes & Patrícia A. Pereira.
A ficção científica de tema ufológico tem tradição no Brasil. A começar do primeiro romance da Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira, O Homem que Viu o Disco-Voador (1958), de Rubens Teixeira Scavone (1925-2007). Scavone, cuja ficção sofisticou-se muito rapidamente ao longo da década de 60, nunca abandonou o tema, e produziu, dentro dele, ao menos uma obra-prima da FC nacional: O 31.º Peregrino (1993), uma história de abdução por extraterrestres, ambientada na Inglaterra do século 14. De Marien Calixte, a coletânea Alguma Coisa no Céu (1985) também trouxe boas histórias dentro dessa tendência, incluindo a premiada "O Visitante", que será incluída na antologia Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica Volume 2, em 2009.
Não obstante, a própria idéia de uma FC de tema ufológico passou por um período de extrema rejeição pela comunidade brasileira de ficção científica, especialmente por aqueles setores mais afinados com o discurso científico, que enxerga na ufologia uma detestável pseudociência. (Uma outra maneira possível de se enxergar a ufologia seria como uma ciência amadora, como a astronomia amadora, ou a geologia e a ornitologia amadoras.)
Em 1991, organizei com amigos de Sumaré, SP, a II InteriorCon - a Convenção de Ficção Científica do Interior do Estado de São Paulo -, com Scavone como o Convidado de Honra. O tema, condizentemente com a carreira desse destacado autor brasileiro, foi a FC ufológica. Antes da realização do evento, porém, fui procurado por uma figura importante do fandom, vinculada ao Clube de Leitores de Ficção Científica, que propôs que eu mudasse o tema, alegando que já havia confusão demais nas livrarias e na consciência das pessoas, entre ufologia e FC, e que nos Estados Unidos a FC evitava o vínculo com a ufologia. Respondi que poderíamos tornar justamente a diferenciação entre essas coisas, a tônica da convenção (além de não enxergar a necessidade de se importar preconceitos), mas o resultado foi um boicote do evento por parte desse sujeito e de outros.
O mais fantástico é que, três ou quatro anos depois, alguns desses mesmos promotores do boicote estavam entusiasticamente adquirindo produtos relacionados à série Arquivo X (1993-2002) e freqüentando convenções dos "X-ers", os fãs da série, em São Paulo.
Por um lado, isso indica que as coisas mudam, e que felizmente os preconceitos se atenuam. Por outro, assinala um problema bastante comum dentro da comunidade brasileira de FC, que é a subserviência intelectual perante a importação de produtos culturais de sucesso.
Minha certeza de que a ufologia pode ser interessante para a FC brasileira vem da observação daquelas obras nacionais de qualidade, como as citadas acima, de Scavone e Calixte. Desde 1991 eu já acalentava o projeto de uma antologia de histórias de "ficção ufológica", projeto que acabou sendo publicado apenas em fins de 1998, pela Caioá Editora, do editor Henrique Monteiro, em parte como tentativa de uma reinvindicação do tema para a FC nacional. Chamou-se Estranhos Contatos: Um Panorama da Ufologia em 15 Narrativas Extraordinárias, e trouxe histórias de Nilson D. Martello (um contemporâneo de Scavone), do próprio Scavone, de Charles Sheffield (uma novela ganhadora do Prêmio Nebula 1994), Carlos Orsi, Cid Fernandez, Anna Creusa Zacharias, Marien Calixte, Daniel Munduruku (um índio brasileiro), Arlan Andrews, Ataíde Tartari, Thomas M. Disch, Ivan Carlos Regina e Finisia Fideli. O livro empregava as histórias desses autores para discutir tendências e temas da ufologia como investigação do fenômeno OVNI, e como subcultura característica do século 20. Em entrevista veiculada em 2007, Milton Frank, do Centro de Ufologia Brasileiro incluiu Estranhos Contatos na sua lista de obras de interesse para o iniciante em ufologia.
Meu conto "Pasta Z: O Caso Graciela", publicado na revista Quark N.º 4, em 2001, é um pastiche de Arquivo X que tenta "nacionalizar", por assim dizer, os esquemas narrativos da série criada por Chris Carter.
Enfim, em 10 de outubro deste ano, é lançado o primeiro livro de Renato A. Azevedo, escritor de FC que manteve uma coluna de contos na revista Sci-Fi News, e que, como articulista, colaborou com a revista UFO, do ufólogo A. J. Gevaerd, que prefacia essa novela recém-lançada, De Roswell a Varginha.
É obviamente um texto de ficção ufológica, primeiro de uma série claramente influenciada por Arquivo X, mas também pelos caminhos e descaminhos da ufologia brasileira - o principal ponto de interesse do livro.
De Roswell a Varginha tem no título dois casos de grande repercussão na história da ufologia, o Caso Roswell, da suposta queda de um veículo alienígena numa localidade rural do Novo México, em 1947; e o Caso Varginha, da suposta captura de ETs, ocorrido em uma pequena cidade de Minas Gerais em 1996. Mediando os dois, um outro caso brasileiro, o do Forte Itaipu, ocorrido em 1957, em que um raio de energia teria afetado dois militares brasileiros, na cidade de São Vicente, litoral de São Paulo. Azevedo costura todas essas ocorrências com as vidas pessoais dos dois protagonistas da sua novela, o jornalista e ufólogo Roberto Monteiro, e a agente da polícia federal, Lígia Barros. Como coadjuvantes, um trio de ufólogos e "teóricos" de grandes conspirações governamentais (outro elemento emprestado de Arquivo X), e um americano vivendo no Brasil, eminência parda que move o casal de protagonistas rumo a um conhecimento maior dos grandes acobertamentos por trás desses casos.
A prosa neutra, jornalística de Azevedo funciona bem no início da narrativa, em que breves dramatizações dos três casos mencionados acima servem de preâmbulo, mas vai se tornando insuficiente, conforme a história mergulha nos relacionamentos entre os personagens e na intriga - que permanecem num plano ligeiro, quase juvenil, sem muita caracterização nem profundidade psicológica ou complexidade narrativa. Azevedo também apresenta um cacoete incômodo - o uso das expressões "o mesmo/a mesma/os mesmos/as mesmas" com função pronominal.
A narrativa, que freqüentemente recua para o passado, tem enredo elaborado, embora algo previsível. Acontece primariamente em 2000, às vésperas da virada do milênio, e inclui, entre outras coisas, um possível alienígena vivendo incógnito como interno em um sanatório mental, o sobrevôo do espaço aéreo brasileiro por uma gigantesca nave alienígena, e a presença de ufólogos conhecidos do campo no Brasil - como Claudeir Covo, com um outro sobrenome - no rol de personagens.
De Roswell a Varginha não escapa de certa tendência didática da FC ufológica, presente não apenas em O Homem que Viu o Disco-Voador, por exemplo, mas também em obras estrangeiras, como Encounter Three (1978), de Martin Caidin. Mas é justamente o aspecto da caracterização ficcional da ufologia brasileira que torna o livro de Azevedo interessante e que o salva de ser apenas um pastiche de Arquivo X.
Com O Homem que Viu o Disco-Voador, Rubens Teixeira Scavone havia capturado algo do ethos do ufológo brasileiro da década de 1950 - o erudito da casuística, com conhecimentos sólidos da ciência ortodoxa e capaz de fazer correções dos OVNIs com fenômenos atmosféricos. Agora Azevedo captura algo do ethos do ufólogo brasileiro da década de 90, dividido entre as correntes "mística" e "científica", propenso às teorias de conspiração e acobertamento - e com dificuldade para inserir suas afirmativas dentro de um modo condicional, hipotético, como exigiria uma postura realmente científica.
Eu certamente espero que, no prosseguimento desta série, Renato A. Azevedo se concentre mais nesse aspecto da ufologia como subcultura brasileira, do que naqueles que traem a influência de Arquivo X.
(É interessante coincidência que esta resenha apareça na mesma semana em que autoridades inglesas divulgaram milhares de documentos sobre ocorrências ufológicas em seu território.)
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